Seu rosto pode estar sendo filmado, analisado e identificado sem que você saiba. É o que revela o relatório Mapeando a Vigilância Biométrica, divulgado nesta quarta-feira (7) pela Defensoria Pública da União (DPU) em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Candido Mendes (RJ). A pesquisa mostra o avanço acelerado das tecnologias de reconhecimento facial (TRFs) no Brasil, especialmente após os megaeventos como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.
Segundo o levantamento, até abril de 2025, existiam pelo menos 376 projetos de reconhecimento facial ativos no país, com capacidade de monitorar quase 83 milhões de pessoas — cerca de 40% da população brasileira. O investimento público já soma mais de R$ 160 milhões, valor calculado com base nos dados de 23 das 27 unidades da federação.
Mesmo diante desse cenário, o Brasil ainda não possui uma legislação específica para regulamentar o uso dessas tecnologias, apontam os pesquisadores. Além disso, faltam transparência, mecanismos de controle externo e protocolos técnicos padronizados, o que aumenta o risco de violações de direitos, discriminação e uso indevido de recursos públicos.
Erros e discriminação
O estudo destaca falhas já registradas em 24 casos entre 2019 e abril de 2025, incluindo o episódio envolvendo o personal trainer João Antônio Trindade Bastos, 23 anos, confundido com um foragido durante um jogo de futebol em Aracaju (SE), em 2024. Ele foi abordado por policiais militares e revistado de forma agressiva antes de provar sua identidade. Bastos é negro, e o caso gerou ampla repercussão, levando o governo de Sergipe a suspender o uso da tecnologia pela Polícia Militar.
O relatório aponta que mais da metade das abordagens feitas com base em reconhecimento facial no Brasil resultaram em identificações erradas. Há evidências de que o sistema é mais propenso a erros quando se trata de pessoas negras, indígenas e asiáticas. Pesquisas internacionais citadas pelo estudo mostram que as taxas de erro podem ser de 10 a 100 vezes maiores nesses grupos, em comparação com pessoas brancas.
Em 2021, o Parlamento Europeu já havia alertado que as falhas técnicas em sistemas de identificação biométrica por inteligência artificial podem levar a resultados enviesados e discriminação.
Projeto de lei e debate público
O relatório também analisa o Projeto de Lei nº 2338/2023, aprovado pelo Senado em dezembro de 2024, que pretende regulamentar o uso da inteligência artificial no Brasil. O texto, no entanto, traz exceções amplas — como uso em investigações criminais, flagrantes, busca de desaparecidos e recaptura de foragidos —, o que, segundo os especialistas, pode abrir caminho para a vigilância generalizada.
Os autores do estudo defendem a urgência de um debate público qualificado, com participação da sociedade civil, academia e órgãos de controle. Entre as recomendações estão:
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Criação de uma lei nacional específica para o uso de reconhecimento facial;
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Padronização de protocolos técnicos e operacionais;
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Realização de auditorias independentes e regulares;
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Transparência nos contratos e nas bases de dados utilizadas pelos órgãos públicos;
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Capacitação dos agentes públicos envolvidos;
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Exigência de autorização judicial prévia para o uso das informações em investigações;
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Limitação do tempo de armazenamento dos dados biométricos;
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Fortalecimento da fiscalização sobre empresas privadas que operam essas tecnologias.
“O relatório evidencia tanto os vieses raciais no uso da tecnologia quanto problemas de mau uso de recursos públicos e falta de transparência na sua implementação”, afirmou Pablo Nunes, coordenador-geral do CESeC.